A disputa comercial desencadeada pelos Estados Unidos (EUA) através do aumento das tarifas sobre todos os parceiros de negócios pode resultar na revitalização da indústria do país norte-americano, conforme afirmado por Donald Trump?
Conforme apontado por especialistas em economia política e desenvolvimento econômico entrevistados pela Agência Brasil, é improvável que a estratégia tarifária de Trump consiga reverter a tendência que teve início nos anos 70. No entanto, argumentam que alguns dos objetivos de Trump podem ser atingidos devido ao domínio que Washington ainda exerce sobre a economia global.
O docente de sociologia econômica e economia política Edemilson Paraná, da LUT University da Finlândia, analisa que a sociedade nos EUA carece de unidade política e ideológica, assim como de coordenação por parte do governo para promover a revigorização industrial do país.



“A administração Trump carece de um plano de investimento em infraestrutura, não possui uma estratégia industrial coordenada, nem adota medidas racionais para controlar os fatores macroeconômicos, como preços, taxa de juros e câmbio, tampouco adota uma política fiscal consistente. Além disso, não há uma regulação bem estruturada para acompanhar este quadro. A revitalização industrial requer um grande engajamento social e um esforço político considerável. Não por acaso, com frequência, os processos de revitalização industrial ocorrem em contextos de unificação, conflitos ou ditaduras”, explicou.
Edemilson afirma que a desindustrialização dos EUA foi fruto das políticas neoliberais implementadas pelo republicano Ronald Reagan, as quais consistiam em desregular os mercados, promover a globalização e financeirizar a economia, medidas que foram aprofundadas pelos demais presidentes subsequentes.
No período de 2001 a 2023, a participação da produção industrial dos EUA caiu de 28,4% para 17,4% da produção industrial global, conforme dados da Casa Branca.
O especialista em sociologia econômica ressalta que a intervenção estatal é crucial para qualquer processo de industrialização, no entanto, ele comenta que a contradição ideológica presente no governo, junto a setores ultraliberais, limita a capacidade estatal de coordenar tal processo. “Há muitas contradições. Como é possível alcançar isso com a figura de Elon Musk [magnata e chefe do Departamento de Eficiência Governamental dos Estados Unidos], que advoga pela privatização do Estado?”, questionou Paraná.
Imprevisibilidade
O professor associado de economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Pedro Paulo Zaluth Bastos expressou dúvidas quanto à manutenção das tarifas a longo prazo, o que deteria decisões empresariais.

“As decisões de investimento demandam um horizonte de estabilidade e previsibilidade bem mais amplo, e é pouco provável que tais decisões sejam tomadas diante da grande imprevisibilidade das políticas dos EUA,” afirmou.
Bastos avalia que as tarifas provocarão um aumento da inflação a curto prazo, podendo minar o apoio político de Trump e resultar no retorno dos democratas ao poder no Congresso nas eleições de novembro de 2026.
“Ele está taxando produtos que os Estados Unidos nem sequer possuem capacidade de produzir internamente, como café, abacate, frutas e legumes. Cerca de 60% das frutas e 40% dos vegetais são importados. A indústria têxtil também não será substituída rapidamente, dado que os EUA perderam sua capacidade têxtil”, observou Pedro Paulo.
Para Bastos, mesmo que a estratégia tarifária persista a longo prazo, o impacto da revitalização industrial nos EUA será relativamente limitado. Talvez setores intensivos em capital, como automóveis e alumínio, alcancem algum nível de reindustrialização, indicou o docente. No entanto, nos setores de semicondutores [chips], a escassez de mão de obra nos EUA tornará o processo complexo. “Na China, há muitos mais engenheiros do que nos EUA. Seriam necessários cerca de seis anos para formar um grande corpo de engenheiros. Não é algo que acontece da noite para o dia,” ponderou.
No mês passado, Trump esvaziou o Departamento de Educação e tem promovido demissões em massa de funcionários públicos.
O professor da Unicamp também apontou obstáculos para a revitalização de produtos baratos, como os da indústria têxtil. “Os imigrantes estão sendo expulsos. Isso resultará em um aumento do custo da mão de obra. Além disso, os trabalhadores brancos não têm interesse em empregos na indústria têxtil”, observou.
Não é tolo
Por outro lado, o professor Edemilson Paraná pondera que a abordagem de Trump “não é totalmente irracional” e que ele poderá conquistar alguns de seus objetivos por meio das tarifas.
“Os indivíduos não são tão simplórios no governo. A ideia por trás dessas tarifas é forçar os países a negociar de igual para igual. Trump está utilizando o enorme poder advindo do mercado americano, que todos desejam acessar, e do dólar, para compelir esses países a concordarem com o que ele deseja”, analisou.
De acordo com o professor, Trump acredita que sairá ganhando de qualquer forma, pois se um país não aceitar suas demandas, ele irá arrecadar receitas por meio das tarifas. “As tarifas têm um impacto fiscal na concepção de Trump. Ele reduz impostos para empresas e corporações de um lado, e obtém receitas com as tarifas do outro lado. Isso equilibra o déficit fiscal,” afirmou.
Edemilson também enfatizou que uma tarifa de 30%, ou até mesmo superior, para acessar o mercado americano é bastante significativa. “É uma porcentagem considerável. Por vezes, compensa estabelecer uma fábrica nos EUA.”
Energia e inflação
Trump espera fomentar a revitalização industrial através da redução do custo da energia mediante a expansão da produção de combustíveis fósseis, responsáveis pelo aquecimento global, juntamente com a redução dos impostos corporativos, conforme observado por Pedro Paulo Bastos, da Unicamp.
“Isso não significa necessariamente que as empresas irão investir. Caso as companhias obtenham maiores lucros com a diminuição dos impostos, elas poderão optar por meramente aumentar a distribuição de dividendos. Para investir, é preciso ter previsibilidade a longo prazo e um crescimento na demanda. Em tempos de recessão, não haverá investimentos significativos”, ressaltou.
Sobre a inflação resultante das tarifas, Edemilson Paraná afirmou que o governo dos EUA espera reverter essa situação por meio do crescimento industrial. “Eles estão argumentando: vejam, isso irá atrair investimentos, gerar empregos, produção, demanda, e isso controlará a dinâmica dos preços porque se trata de um choque momentâneo que se resolverá no médio e longo prazos,” analisou.
Dólar
Outro objetivo da estratégia de Trump para revitalizar os Estados Unidos é desvalorizar o dólar em relação a outras moedas para tornar as exportações norte-americanas mais competitivas. No entanto, conforme Pedro Paulo Bastos, da Unicamp, é improvável que os EUA implementem uma política que reduza consistentemente e de forma sustentada o valor do dólar, visando favorecer suas exportações.
“A desvalorização do dólar prejudica os interesses de Wall Street, que poderia perder sua posição central no sistema financeiro internacional. Trump não está em oposição aos banqueiros. Pelo contrário, ele mantém uma relação muito próxima com esse setor,” avaliou.
Por outro lado, Edemilson Paraná explicou que, embora o dólar seja a principal moeda no comércio global e seja utilizada para acumular riquezas, ela confere um poder considerável aos EUA, ao mesmo tempo em que prejudica as exportações do país.
“Com isso, o mercado consumidor dos Estados Unidos se torna gigantesco. É como uma máquina de consumo global. Afinal, tudo é consumido, inclusive a poupança mundial que flui para os EUA. Tudo estava indo muito bem nesse arranjo, até que a China começou a expandir sua competência e capacidade em todos os setores de tecnologia de ponta”, destacou.
Para Paraná, há uma diferença entre dominar as finanças e a tecnologia, com outros países produzindo bens materiais; “e perder o monopólio dessas tecnologias. Isso representa uma ameaça para o poder econômico dos EUA”.
China
Edemilson Paraná mencionou a ausência nos EUA da unidade e capacidade de gestão estatal presentes na China, que é mais estável e previsível, apresentando também uma capacidade ampla de coordenar diversas políticas, fator que contribui para o sucesso da industrialização da potência asiática.
“A China consegue alcançar o que os Estados Unidos não conseguirão. Os EUA previam que poderiam continuar a ter a China como um parceiro menor, meramente produtor de mercadorias simples. Entretanto, os chineses utilizaram essa posição para ascender nas cadeias globais de valor,” ponderou.
Paraná argumentou que o Estado chinês possui um elevado grau de integração das políticas industrial, fiscal e macroeconômica, mantendo um controle considerável sobre as principais variáveis dos preços macroeconômicos, como salários, juros, renda da terra e câmbio, o qual não é tão flutuante no caso da China, mas é gerido visando favorecer as exportações.
“O plano de Trump não leva em consideração a complexidade da economia atual, por um lado, e, por outro, que os EUA passaram por um processo de desindustrialização ao longo de 40 anos. Na década de 70, um em cada cinco empregos nos EUA era na indústria. Atualmente, é apenas um em cada doze,” finalizou.
Fonte: Agência Brasil
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